terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Contadora de histórias (II): A arte não tem preço




Numa segunda-feira chuvosa de janeiro, a Lapa – berço da boemia carioca – estava vazia. Nada daquela pândega que costuma tomar suas ruas estreitas de terça a sábado. Nada de samba, nem de calor. Mas a alegria estava lá.

E eu também. Sentada em um dos bares da avenida Mem de Sá, o copo à minha frente não era de cerveja; era refrigerante mesmo. Olhar perdido nos pingos que escorriam dos casarões antigos, pouco restaurados, restantes do Brasil Colônia, em contraste com
os prédios espelhados, modernos, que surgiram na região nos últimos tempos. A música de fundo era um chorinho, que ecoava das caixas de som presas às paredes coloridas, estampadas com motivos cariocas.

Embalada pela leveza das férias, sonhava acordada. Sonhava com a arte, a música, a literatura, que pairavam como nuvens espessas na atmosfera daquele bairro, que já abrigou intelectuais e artistas como Machado de Assis e Villa-Lobos. Quisera eu ser artista também, ou ao menos intelectual. Quisera eu ter nascido na virada do século XX e andado por aquelas ruas do Rio antigo.

O que me fez despertar do sonho foi uma figura, quase como um vulto, que caminhava na chuva – torrencial, agora – em direção à varanda onde eu estava, aquela do bar, do chorinho, dos motivos cariocas. Mais do que à varanda, vinha em minha direção. Ao se aproximar, percebi que se tratava de um morador de rua, vestido em farrapos, exalando um forte odor de suor. Trazia em mãos fiapos de folhas grandes, como de bananeira (no meu leigo entender sobre plantas), enrolados em ramos, bem direitinho. E uma faca no bolso, da qual só se via o cabo e uma parte do aço.

Parou à minha frente, olhei bem suas feições, um pouco temerosa a respeito do motivo que o levou até ali. Sem me retribuir o olhar, levou a mão a uma sacola de plástico amarrada à bermuda jeans suja e, antes que eu percebesse, estendeu um objeto. Longe de querer que vocês pensem que era uma faca, tal qual a que ele levava no bolso, me apresso em dizer: era uma bela “rosa”, talhada nas folhas da suposta bananeira.

Ao que aceitei aquele presente, ele desenrolou outra folha e sacou a faquinha do bolso; começou a, habilidosamente, formar uma figura naqueles retalhos vegetais. Em menos de um minuto, me esculpiu um peixe. Talvez entusiasmado pelo meu sorriso ao perceber o talento com que fazia sua arte, se esmerou em dar forma de um gafanhoto a outras duas folhas verdes. Impressionada com a destreza do rapaz e vidrada na maneira com a qual ele transformava plantas em arte...

Espera, quero só fazer uma ressalva quanto a essa última frase. Vamos excluir da discussão o fato de que:

I) Plantas já são uma arte da natureza;
II) Não se destroem plantas a fim de fazer uma “arte”.

Bem, impressionada com a destreza do rapaz e solidarizada pela sua “situação de rua”, como nos obrigam a dizer os opressores capatazes da forma politicamente correta de falar as coisas, perguntei quanto valia seu trabalho. Mais que prontamente, ainda sem levantar o olhar e sem parar de manusear suas folhas e faca, me respondeu:

- A arte não tem preço.

Percebi sinceridade naquela fala e não só uma humildade impositiva que te faz ficar com pena e dar um dinheiro qualquer. O que aquele rapaz queria era mostrar sua arte.

Procurei na bolsa. Em dinheiro, tinha 20 reais e 20 centavos. Preferi dar os 20. Reais. Mais caro que minha conta no bar, restrita a um refrigerante e um potinho de manjubinhas com limão. Mas, aquela arte valia a dignidade do rapaz. Feliz com o agrado, me fez mais uma rosa e pela primeira vez me lançou um olhar, de agradecimento. Foi embora, de volta pela Mem de Sá alagada pela chuva recém-passada.

Voltei a divagar sobre a arte, a música e a literatura, ladeada por duas rosas, um peixe e um gafanhoto feitos de folhas grossas verde-amareladas. Não sem antes pensar: será que o escultor de plantas ficou mais feliz pelos 20 reais ou por ter sua arte admirada por pelo menos uma pessoa naquela noite? Nas condições em que se encontrava, certamente, pelo dinheiro. Mas, na minha inocente concepção de mundo, preferi acreditar na segunda hipótese.


2 comentários:

Fabiana Gomes de Carvalho disse...

Amei o texto. E, sinceramente, Lê, não creio que seja "uma inocente concepção de mundo", acredito que todos reconheçam o valor do dinheiro, principalmente, em uma situação dessas, mas, sem dúvida, o artista se entusiasma com o reconhecimento do verdadeiro "valor" de sua arte. Beijo!

Ana Guimarães disse...

Bacana a história! o trabalho do camarada também! Êta Lapa... quase impossível ter um dia comum por aquelas bandas, né?
Beijocas!