sexta-feira, 1 de junho de 2012

Observações da madrugada

Eu morro de vergonha, mas continuo a ter as perguntas absurdas. Sabe aquelas? De criança? Quando pequena, tive inúmeras – insistentes - repetidas até enlouquecer o mais calmo dos cidadãos. “Mãe, o que é a canjica?? E o feijão?” Quando ela explicava que eram plantas e blá blá, eu pirava. “Planta?? Planta dá comida? Podemos plantar o que quisermos? Bala também?” e por aí vai. Ocorre que já se passaram anos e as perguntas absurdas insistem em acontecer. Em criança é bonitinho, mas em uma mulher adulta é sinistro. Sinal de maluquice, no mínimo.

Então ontem eu tive uma erupção de perguntas absurdas. Cheguei da noite e olhei para as plantas. As gatas dormiam. Era tarde. Pensei: as plantas dormem, será? Existe um momento de latência, certo? Quando a luz já não ocorre e elas consomem oxigênio. É o dormir delas? Elas estão mais preguiçosas, menos despertas, propensas a babarem? Sonham? Se sonham, com o que sonham? Sonhos do inconsciente ou vontades? Quais seriam as vontades? Muita terra, paragens verdes a perder de vista? Não, claro que não. Esse é um sonho muito capitalista, demasiadamente humano. As plantas devem sonhar com cheiros e cores e olhos, muitos olhos, como os das aranhas. Serão invejosas das flores uma das outras? Não, não. Devem saber que cada nota de verde vale mais que muitas flores juntas e o que o silêncio onde vivem é dos mais musicais.

Pudesse, seria planta. Uma existência inteira sem jamais agredir. Ser verde e quieta e bonita. Ter ambição de água. No máximo morrer, silenciosa e digna. Gostar de minhoca, ter raiz e sentir a chuva. Quando morrer, faço esse pedido para Deus ou para o encarregado que me receber. Sei a resposta, mas faço o pedido assim mesmo. Vai que cola. O encarregado vai olhar pra minha cara e gritar lá pra dentro: “Chefe, mais uma engraçadinha querendo pular etapas. Ô filhinha, para ser planta é preciso ter merecimento. Primeiro, há que se ser Gandhi. Madre Teresa também vale. Quer tentar?”.

domingo, 29 de abril de 2012

Eu apanhei, tu apanhaste, ele/ela apanhou





Esse domingo estava conversando com um amigo e chegamos a uma conclusão óbvia: na minha geração era comum bater nas crianças. Eu apanhei. Todo mundo meio que apanhava. Lembro de chegar na escola comentando que tinha apanhado e escutar minha amiga dizer: “putz, eu apanhei semana passada”. Falando assim parece que estávamos sendo espancados, todos nós, mas não. Era uma lógica comum, sabe? Puxão de orelha, beliscão e cascudo comia solto. O treco era disseminado. Era a época das havaianas de pau. Irmanados nessa realidade absurda, fazíamos piada com a coisa. Tinha aquela de reparar no chinelo dos pais (e mães). Rider era fatal. O bicho era bruto. Chinelada de Rider levantava vergão até no Hulk. “Caraca... a mãe de fulano usa rider”, e todos entendíamos a piada. Era engraçado, de verdade.

Hoje fico vendo essa discussão sobre a lei da palmada. Eu não tenho filhos, mas sou impaciente. Não sei dizer, sendo bem sincera, se poderia criar um filho sem nunca, jamais, perder as estribeiras. Especialmente porque hoje em dia os pais criam os filhos até os trinta e tal.  Sou contra a palmada, entretanto. Contra mesmo.  Não educa não, minha gente. O que educa é diálogo, exemplo. Bater humilha. Eu me sentia humilhada quando vinham as palmadas. Era o último recurso, né? Era a decisão do STF. Preciso dizer que fui danada? Óbvio que era encapetada, quase um saci. Minha mãe, coitada, vai ejetar direto pro céu. Sobe que nem foguete, aquela ali... certeza. Teve três filhotes para madre Teresa nenhuma botar defeito. Mas sei lá... discordo da minha criação nesse aspecto (e em vários outros), apesar de achar que os velhos trabalharam bem. Bater é ruim, gente. Apanhar é pior ainda.

domingo, 22 de abril de 2012

Cusparada de candanga

Tão poucos somos, os teus.
Uns poucos filhos, uns poucos poetas, uns poucos a cantar-te a generosidade, grande Brasília.
E tu, tão nobre.
Difamada por aqueles que passam e não são.
Tu és.
Tu és espaço.
Tu és cenário, perene.
Querida, tão difamada...
Crucificada apesar de aberta, como Cristo.
De mãos estendidas, sempre a cobrir de luxo os que te cospem na face.
Tão jovem, talvez a mais jovem dentre as grandes.
E tão cobrada, coitada, a caçula das capitais.
Como é grande a tua luta.
E como te levanta, sempre.
Tinge os dias de aquarela e segue.
Que recebes, querida?
Fecha tuas portas.
Oferece teu céu aos que te amam.
Mas não. Segues teu trajeto, a despeito da dor dos seus.
Hoje é teu aniversário. Que receberás?
Umas cusparadas, por certo. Outras ignonímias tantas.
Hoje é teu aniversário. Que receberás?
Uma festa, uns fogos, uns cantores – todos ávidos de dinheiro e carentes de amor a ti.
Terra minha, pudesse te abraçaria.
Por um minuto, te envolveria, Brasília, nos braços e sussurraria meu amor.
Hoje é teu aniversário, mãe querida.
Um brinde a quem me deu a vida!

sábado, 21 de abril de 2012

Brasília 52


Quando era criança, detestava o fato de ser brasiliense. Queria ser maranhense ou carioca, como meus pais. Queria ir embora da cidade sem mar, sem esquinas e sem vizinhos que vêm bater na porta pra papear. Queria ter sotaque - 'afinal, por que brasiliense não tem sotaque?' Detestava ser chamada de candanga. Mais ainda ouvir dizer que morava na cidade dos ladrões.

Tudo começou a mudar quando um dia - bem longe daqui - comecei a conversar com alguém que, pelo meu jeito de falar, me perguntou quase afirmando: 'Você é brasiliense, né?' Qual não foi a minha surpresa: brasiliense tem sotaque!

E fui além: minha cidade não tem mar, mas tem um céu que nenhuma outra tem. Não tem esquinas, mas quem precisa delas? Não tem vizinhos que se falam com frequência, mas tem gente boa em todo o canto e vinda de todos os lugares do Brasil e do mundo.

Sou candanga sim. Não ajudei a construir Brasília com a força dos meus braços, mas ajudo a modelar sua civilidade.

E por fim, se a cidade abriga tantos políticos corruptos, a culpa é de quem - em outros estados - os manda para cá, por meio da mediocridade dos seus votos. Não eximindo a culpa dos próprios eleitores do DF que também elegem mal seus governantes, claro.

Hoje, eu amo Brasília. Entendi que é peculiar demais ser brasiliense; afinal, somos poucos os nascidos aqui (não se vê uma velhinha nativa, por exemplo). Mas que, acima de tudo, todos os brasilienses carregam em si um pouquinho do Brasil todo.

Parabéns, Brasília! #52anos

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Amarrada, eu??


Tinha os dentes de cima bons, bonitos. Os de baixo eram tortinhos, mas nunca liguei. Achava que essa lógica euclidiana e dodecassílaba valia lá para os parnasianos, não para dentes. Aqui, onde triturava os alimentos, onde mascava pedaços de coisas, salivava e babava, lambia doces, feridas e pessoas... aqui na boca - pensava eu com meus botões - é bem mais honesto que exista uma desordem aparente, ainda que pequena.

De mais a mais, gostava dos tortinhos, da marca da mordida nos copos de plástico e maçãs. Achava que era inconfundível. Um belo de um dia, surge uma dor de cabeça. Os dentistas já haviam avisado que o aparelho era necessário, que podia acarretar enxaquecas, que havia lá um desvio na mandíbula, etc. Resolvi consultar o dentista que, logicamente, culpou a mordida pelas dores de cabeça e traçou um método para corrigir a mordedura. Tudo muito calculado. Fotos, radiografias, moldes. Dois anos de tratamento. Dois anos?? – perguntei atônita. Dois anos ou o resto da vida com enxaqueca – foi a resposta, das mais cínicas, como se vê.

Isso foi há um ano e quatro meses. Faltam oito, portanto. Não há um só dia em que eu não pense no assunto. Seja pelos lábios grudados no ferro do aparelho quando acordo ou pelas babadas incontroláveis que solto quando converso. Fato é que o danado do aparelho não me dá sossego, permeia meu cotidiano, sempre indelicado e incômodo. É a vergonha de sorrir, a necessidade de explicar, a preocupação com a limpeza, a dor quando me bato sem querer, a dificuldade de morder, a saudade do sorriso nas fotos e mais um tanto de coisinhas.

Hoje tive um insight. É um casamento. É um casamento! Isso de conviver tão entrelaçadamente, de me sentir tão exposta e vulnerável, isso é como um casamento. Estou seguindo – assim como quando me casei – as recomendações da sociedade. Fazendo tudo certinho para alcançar um bem maior ali adiante. Isso ou o resto da vida com enxaqueca, certo? Aquilo ou o resto da vida com a dúvida, com o receio de não ter tentado, sozinha num apartamento com 15 gatos, três cachorros e um papagaio, certo? Sei não, heim... os que já tiraram o aparelho sempre dizem que, extraídas as porções de ferro, a sensação é de nudez, de vazio. “Você vai sentir até falta” – já me disseram também. Seguindo a lógica do insight, deve fazer falta mesmo, especialmente num primeiro momento. Mas olha, minha gente...ninguém tira da minha cabeça que minha vida será melhor sem o aparelho. ;)

P.S: Não convém digitar “aparelho” e “boca” na pesquisa de imagens do Google.

quinta-feira, 22 de março de 2012

O motivo da tristeza

Fui à casa de minha mãe logo cedo para devolver as chaves do carro. Ela perguntou por que eu estava triste. Disse que era sono. O vigilante do trabalho perguntou, antes de cumprimentar, por que eu estava triste. Disse que era gripe. Ao meio dia, no refeitório, duas colegas perguntaram o que eu havia feito da Ana. Disse que a engoli e tomei o seu lugar. Depois do almoço, fui buscar um café na copa. As copeiras perguntaram se eu estava bem. Esgotei o arsenal de respostas. “Estou triste”, disse, “mas passa”. Elas perguntaram por que.

- Deus, entendi o recado. Favor acalmar os ânimos do seu exército de anjos. Resolvi ficar alegre, mas fique o Senhor sabendo que é por preguiça pura. Ficar triste é trabalhoso demais.

quinta-feira, 15 de março de 2012

O dia em que não fiz a prova do Senado

O destino da prova era diametralmente oposto à minha casa. Atravessaria a cidade toda para fazê-la e tinha febre. Gripe. Não me sentia preparada. Não tinha estudado o suficiente. Não via sentido em fazer uma prova para ganhar experiência. Não queria encontrar os amigos, teoricamente mais bem-sucedidos que eu, abarrotados de papéis e apostilas rabiscadas, lidas e relidas à exaustão. Não queria pensar no valor pago pela inscrição nem nas desculpas que daria a quem me perguntasse se fui bem. O corpo mole, as pernas vacilantes e a tosse estranhamente me traziam a sensação de estar viva, de pertencer àquele corpo doente, perecível. Tinha medo também. De encarar talvez o que muitos colocam como objetivo maior de suas vidas, ainda que momentaneamente. Medo de gritar ao mundo que eu não me importava com a prova do Senado. O salário é tão alto e tão superior às necessidades básicas que é um vexame não almejá-lo. Compra sonhos. Quem não quer é, no mínimo, preguiçoso.

Há três ou quatro meses, a cidade se dividiu. De um lado, os esforçados, responsáveis, comprometidos com seu crescimento. De outro, os fanfarrões, encostados em um salariozinho qualquer. De todos os lados, respingava em mim aquele sentimento de cobrança. Busquei explicações. Estava me sabotando? É mediocridade esse desânimo para estudar? Ainda não sei as respostas. Sei que naquele domingo fazia sol, a cidade estava coberta de um amarelo lustroso e convidativo. Eu sei, eu sei... muitos outros dias de sol virão. Sei também que perderei o sossego um dia, rangendo os dentes diante de uma prova qualquer, seja do Senado ou não. Sei que olharei para os aprovados conhecidos com a certeza de que eu poderia estar ali. Muitos serão os sofismas. “Eu estou satisfeita com o meu emprego atual” ou “Tenho que resolver a vida já?” ou até “Na verdade acho os salários ofensivos e injustos e não quero compactuar com isso”. Em todas as argumentações, parte é verdade.

O que incomoda é essa sensação de não ter feito o que deveria. E quando meu nome constar na lista de aprovados? Poderei então cumprimentar parentes e amigos com a sensação de ser uma pessoa respeitável? Terei aquele olhar de quem chegou lá? Plasmarei aquela áurea de opulência e satisfação? Terei jóias, roupas de grife e uma prestação da casa própria? É isso, então, o que me espera quando adentrar a lista dos que venceram? Continuo sem saber as respostas. Sei que naquele domingo escolhi um bom restaurante e um bom prato. Pedi sobremesa também. Perguntei ao garçom se ele achava que eu merecia e ele respondeu que sempre. Pode ser que esteja acomodada mesmo. Pode ser que esteja feliz.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Boba, eu???

Uma vez briguei com meu pai e me lembro bem da reação dos meus amigos e do meu então marido à época. Eles me pediam ira quando, na verdade, o que eu trazia no peito era uma mágoa profunda e dolorosa. Isso acontece sempre. Ainda hoje, pela manhã, tomava café com amigos e uma delas me disse: “eu não acredito que você fez isso. É por isso que as pessoas não te respeitam”. Esse tipo de frase, que mais parece uma sentença, sempre aparece na minha vida. Vinda de vários lugares distintos, em ocasiões distintas, em momentos diferentes. Naquela primeira ocasião que relatei, quando briguei com meu pai, uma grande amiga perguntou o que poderia fazer para ajudar. “Por favor, não me cobre indignação, eu disse. Não sou capaz disso agora”. Na verdade, quando deixo que a raiva escoe, lido com uma espécie de arrependimento estranho. Estranho porque acredito que aquela era a reação mais digna, por assim dizer, mas me envergonho muito de tê-la cometido. Sou capaz de indelicadezas e mesmo de maldades, mas não sem perder a paz.

No caminho do meu crescimento, quando estiver realmente desapegada das percepções alheias, espero sentir liberdade. Liberdade para expressar isso de delicado em mim, ainda que piegas. Liberdade para expressar o meu afeto, ainda que o objeto dele não se importe. Amar exige coragem. Não apenas para se lançar mundo afora. Coragem para sentir. Cisão máxima da vida, o amor divide trajetórias em antes e depois. O que resta do amor, quando findo, é o que amedronta. A devassa interior, a desordem, o vazio. É justamente nesse ponto que acredito ser incompreendida. Não é falta de senso crítico ou de estima. É que sempre me orgulho de ter amado. De ter deixado de lado meus penduricalhos de medo e trauma e abraçado a esperança. Isso de olhar para o agora, numa atitude absolutamente conectada com o presente. Falo de amor em lato sensu, englobando aqui também o sentido de amizade. Não sou boba, não. Só não aceito me privar de amar por uma decepção qualquer.

PS: Não, não estou triste. Não, não levei um fora (agora). Foi só isso de me chamarem de boba que incomodou. Me acho espertona. Devo ser boba mesmo.