quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Violência gratuita

Estava guardada numa gaveta, deslocada pra lá e pra cá em mil mudanças, e eu não me lembrava. Era uma das edições da coluna do Contardo Calligaris, publicada em 4 de setembro de 2008 na Folha de São Paulo –, em que o psicanalista fala sobre ciúmes.
Pois não imaginaria, quando meti o texto na gaveta, que o assunto daquela coluna guardaria estreita relação com um episódio assombroso da minha vida, que viria a acontecer mais de um ano depois da data de publicação.

Há dois dias, recebi de uma conhecida uma mensagem de texto de um ódio pulsante, enviada por sms para meu celular. Não reproduzirei aqui as palavras chulas que qualquer mente pouco imaginativa poderá certamente representar com fidelidade. A portadora dos maus sentimentos é uma mulher traída. O namorado, ao se ver longe dela, buscou consolo nos braços de outra mulher. O meu pecado, imperdoável, foi o de ser amiga da outra, de ser intimamente ligada ao objeto da raiva da mulher traída, àquilo que desencadeou o sentimento de ameaça ao relacionamento cambaleante da traída e feriu seu amor próprio.

Incapaz de agarrar com as próprias mãos a suposta rival, a traída canalizou toda a raiva a mim - mais facilmente acessível graças à tecnologia de emails, chats e sites de relacionamentos. Foi a mesma tecnologia que estimulou o desejo incontrolável da traída de alimentar seu próprio ciúme. Segundo o namorado, foi por causa de uma invasão ao seu email pessoal que a traída descobriu o componente que faltava para justificar o ciúme. De acordo com Contardo, nem sempre o ciúme é reativo: às vezes, o ciumento inventa (ou procura) situações para alimentar seu ciúme. De posse da senha roubada do namorado, é bem provável que a traída tenha vasculhado mensagens antigas – já que o encontro com a outra ocorreu uma única vez há muitos meses passados - até encontrar algo que finalmente comprovaria sua tese desfiada dolorosamente há tempos: a de que o namorado não a ama como ela a ele e que, por isso, a trai, mente, esconde.

Ao arrombar as portas da intimidade virtual do namorado, a ciumenta também invadiu o programa de chat ligado ao e-mail, em que o rapaz me tinha entre seus contatos, e aproveitou a empreitada para lançar mais desaforos a mim. Além das palavras baixas, ameaças.

Seria um episódio lamentável e triste apenas, caso eu não estivesse grávida dos primeiros meses. Esta é uma fase em que uma grande alteração hormonal pode afetar seriamente a vida do bebê e a saúde da mãe. E eu me senti assustada e indefesa, diante de agressões gratuitas. Especialmente por, ao procurar a polícia, descobrir que estava em greve. “Só atendemos flagrantes”. Mas esse não é mesmo um caso flagrante de violência gratuita, indaguei inconsolada a mim mesma.

Em face do total descontrole da traída, de suas reações irascíveis e da falta de apoio público, procurei no texto de Contardo alguma explicação da psicanálise. “Os terapeutas psicodinâmicos notam que o ciumento é mais preocupado consigo e com seus rivais do que com o objeto de seu amor”. Logo, não há uma ética, uma conduta apropriada ou um limite capazes de frear os ímpetos destruidores do ciumento frente aos outros e até a si mesmo. Não importa à ciumenta, portanto, se o seu relacionamento torna-se escandalosamente dilacerado, se outros são atingidos, se há na história alguém mais frágil.

Ao que me parece, importa unicamente ao ciumento alimentar o próprio ciúme, e alimentando-o, nutrir também o seu desejo de vingança, principalmente, relativo ao rival ou a um terceiro, na tentativa vã de se livrar do sentimento que cultiva. Eu sou a terceira.

Mas, para além de tentar entender o comportamento violento, de tentar me proteger de alguma maneira, de me livrar do susto e do medo, senti uma tristeza, uma descrença grande demais nas pessoas, em qualquer pessoa, no amor. Como, afinal, esse sentimento pode atormentar e ultrajar tanto? Como amor e ódio podem ser assim tão entranhados? Acordei no meio da noite com pesadelos. Não pensava na ciumenta, pensava no meu filho nesse mundo de gente que comete violências gratuitas, que fere sem sentir. Chorei.

De manhã, vesti mecanicamente as roupas. Pensei no Estado que nunca está presente na vida dos cidadãos, nessa greve da polícia, no dia de trabalho pouco estimulante. Tomei café frio e evitei ligar o ipod no carro. Ao chegar ao trabalho, fui abordada pela guardete que confere os crachás de todos ao entrar. “O que é?”, perguntei com pressa e desdém. “É que você anda tão bonita ultimamente, linda. Eu tenho reparado isso e até comentei com sua colega. O que você tem de novo?”, surpreendeu-me. “Acho que é a gravidez”, respondi, me abrindo de novo em sorrisos. “Nossa, muitas felicidades, muitas felicidades!”, disse, comovida.

Sim, me lembrei. Também há no mundo as pessoas que causam pequenas felicidades assim, sem sentir. Eu espero que meu filho seja uma dessas pessoas. Que ele, ou ela, emocione mais que maltrate, faça rir mais que chorar, que se pareça mais com o pai que comigo e que, por isso, leve a vida mais leve, que saiba amar.