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sexta-feira, 14 de maio de 2010

Eu, pesquisadora



Tem coisas que não têm preço. Há um mês, exatamente, eu estava na Espanha. A parte ruim é que era a trabalho, por apenas quatro dias. O lugar exato era Salamanca, que abriga uma das universidades mais antigas do país (foi criada em 1218) e leva o mesmo nome da cidade.

Salamanca é pequena; tem cerca de 160 mil habitantes. É uma cidade universitária, cheia de repúblicas, como nossa Ouro Preto, em Minas Gerais. Tem uma catedral belíssima, um rio que corta a cidade, uma Plaza Mayor como a de Madrid – guardadas as devidas proporções. Enfim, paisagens europeias como a gente costuma ver por lá. Mas, de tudo, o que me chamou mesmo a atenção foi uma biblioteca.

Nem todo mundo tem acesso à Biblioteca General de la Universidad de Salamanca; apenas pesquisadores cadastrados. Taí uma vantagem de se viajar a serviço, ainda mais quando o trabalho é na área da educação. Minhas companheiras de missão e eu fomos convidadas a conhecer o acervo. “Chato”, pensei. Perto da hora do almoço, meus pensamentos estavam voltados para um certo jamón ibérico, servido como entrada costumeiramente nos restaurantes espanhois.

Na entrada da biblioteca, nos aguardava um rapaz calçado em luvas brancas, funcionário do local, que nos guiaria através das salas, em meio aos livros velhos (que me fazem espirrar, geralmente). Fazia frio, muito frio lá dentro; não pode haver calefação artificial, por causa da conservação do acervo. “Chato”, pensei de novo.

Ao pisar no primeiro corredor do grande edifício – quando o terceiro “chato” começava a brotar na minha mente – dou de cara com uma obra que eu adoro: Don Quixote. Não era uma edição qualquer do texto de Miguel de Cervantes (que, aliás, estudou na Universidade de Salamanca); era uma edição comemorativa do século 18, impressa em papéis mesclados com fios de ouro. A capa era em ouro. As capitulares eram pintadas de ouro. E era ouro puro.

Ainda impressionada com aquela peça rara, fui percorrendo as alas da biblioteca, já esquecida do jamón vespertino. Entre os 140 mil livros pertencentes ao acervo, vi outras raridades. Manuscritos de cânticos do século 11, obras censuradas de Galileu Galilei – o cara que descobriu o princípio da inércia e que, além de físico, era matemático, astrônomo e filósofo. Os textos do Galileu eram os originais, com páginas arrancadas, colagens e rabiscos feitos pelo censor. Naquela época, lá no século 17, a igreja acusava o cientista de defender opiniões contrárias às Escrituras.

E a cartografia? Vi globos terrestres de todo tipo, confeccionados há centenas de anos, desde quando achavam que a terra era plana, bem antes de Ptolomeu vir com a ideia de um globo curvado, com latitudes e longitudes.

Foi então que nos levaram à sala mais secreta de todas: o cofre. Não, nada de milhões de euros. As preciosidades guardadas nesse lugar são muito, muito mais valiosas. Dentro de uma arca de madeira, coberta por barras de ferro e trancada a cinco chaves (de verdade, não é força de expressão), estava um dos primeiros exemplares da Torá, o livro dos judeus, em um rolo manuscrito tão extenso que não deu pra desenrolar nem um décimo dele. Na mesma arca, o que me deixou mais boquiaberta: a mapa usado por Cristóvão Colombo (que também foi estudante de Salamanca) para chegar às Índias e com o qual acabou chegando à América.

Impagável.

Na terra das touradas e do flamenco, me descobri pesquisadora. E uma grande amante da História.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Bon día, Barcelona



No aeroporto lhe disseram que era fácil chegar à casa do amigo que ela nem sabia se estava à sua espera. “Basta pegar a linha 3 do metrô”. A informação veio em espanhol amável. Bom começo pra quem enfrentaria dias de catalão. Meio português, meio italiano, meio francês. “Definitivamente, língua latina”, sentenciaria dali a alguns dias. O guarda apontou com o braço esticado o caminho. Pessoas lendo as primeiras notícias da manhã, caras amassadas, fones de ouvido. Olhando para o nada, para os trilhos que não se vêem de dentro do vagão, aquela massa de gente às oito horas rumava para o trabalho. A vida segue no verão. Ela ansiava em ver a vida acontecer, em ir à praia. “Será que tenho coragem de fazer topless?”, cogitou.

O amigo se lembrava dela. Tinha se esquecido de deixar as chaves na caixa de correio. Toda viagem tem seus contratempos. Em cima da garupa da moto do anfitrião (coisa que nunca tinha pensado fazer) deixou os cabelos e o pensamento correr. Viu a Casa Batlló, parou na Sagrada Família. O moço queria logo impressioná-la. Não parava de falar da arquitetura de Gaudí, um catalão muito famoso. Só ficou mesmo na memória a cara do Cristo que a acompanhava onde fosse. Lembrou dos olhos da Mona Lisa. O Cristo encravado na entrada da igreja inacabada, com a cara pesada e grave, com a cara tão triste. E ainda nem tinha visto o outro lado da construção: a parte gótica. Sentiu calafrios.

O estômago roncava. Não achou graça nenhuma da comida francesa. Será que é por que comeu barato demais? “Se só o caro apetece, então não presta mesmo”, radicalizava. Naquela hora, até um brioche amanhecido servia. Descobriu as tapas. E a papas. Confundia toda hora. As papas vêm em tapas. Tudo vem em tapas, perceberia afinal. Tapas são porções. Papas, batatas. E como amou aquelas batatas com uma espécie de molho de alho com queijo. Dos pimentões verdes assados ainda sente o ardor. A boca enche d’água. Sim, preferiu a comida espanhola. Que os catalães não a ouçam generalizar.

Teve vontade de andar de bicicleta. Tantas bicicletas estacionadas. “Deveria me exercitar mais em Brasília”, sentiu pena. Usou o metrô. Satisfez a consciência pesada de tanta comida ao andar a pé. Seu senso de direção desusado rejeitou mapas e dirigiu-a a becos repetidos, ruas estreitas, muros de pedra, varandas abertas para o verão. Deixou-se vagabundear. Observou furtivamente transeuntes descolados, arranha céus deslocados.

No parque Guell, revisitou Gaudí. Agora, muito mais alegre. Em geral, não gostava de tanta gente reunida. Naquele dia, achou graça em tentar adivinhar o idioma falado pelo grupo ao lado. Ouviu um punhado de cantores de rua ensaiar garota de Ipanema. Percebeu um violoncelo ao longe. Passou não se sabe quanto tempo perdida entre jardins de mosaico, colunas e viadutos majestosos. Os minutos não contavam.

Teve tempo de olhar o mar do alto. Espiar os barcos. De lá de cima, imaginou os milhões de casais entrelaçados naquele instante em cada canto. Despediu-se do amigo, dos amigos do amigo. Prometeu encontros, telefonemas. Trocou endereços de e-mail. Mais um trem pela frente. Testaria seu espanhol em Madri.

Texto baseado em fotos de Monique Renne