Estava guardada numa gaveta, deslocada pra lá e pra cá em mil mudanças, e eu não me lembrava. Era uma das edições da coluna do Contardo Calligaris, publicada em 4 de setembro de 2008 na Folha de São Paulo –, em que o psicanalista fala sobre ciúmes.
Pois não imaginaria, quando meti o texto na gaveta, que o assunto daquela coluna guardaria estreita relação com um episódio assombroso da minha vida, que viria a acontecer mais de um ano depois da data de publicação.
Há dois dias, recebi de uma conhecida uma mensagem de texto de um ódio pulsante, enviada por sms para meu celular. Não reproduzirei aqui as palavras chulas que qualquer mente pouco imaginativa poderá certamente representar com fidelidade. A portadora dos maus sentimentos é uma mulher traída. O namorado, ao se ver longe dela, buscou consolo nos braços de outra mulher. O meu pecado, imperdoável, foi o de ser amiga da outra, de ser intimamente ligada ao objeto da raiva da mulher traída, àquilo que desencadeou o sentimento de ameaça ao relacionamento cambaleante da traída e feriu seu amor próprio.
Incapaz de agarrar com as próprias mãos a suposta rival, a traída canalizou toda a raiva a mim - mais facilmente acessível graças à tecnologia de emails, chats e sites de relacionamentos. Foi a mesma tecnologia que estimulou o desejo incontrolável da traída de alimentar seu próprio ciúme. Segundo o namorado, foi por causa de uma invasão ao seu email pessoal que a traída descobriu o componente que faltava para justificar o ciúme. De acordo com Contardo, nem sempre o ciúme é reativo: às vezes, o ciumento inventa (ou procura) situações para alimentar seu ciúme. De posse da senha roubada do namorado, é bem provável que a traída tenha vasculhado mensagens antigas – já que o encontro com a outra ocorreu uma única vez há muitos meses passados - até encontrar algo que finalmente comprovaria sua tese desfiada dolorosamente há tempos: a de que o namorado não a ama como ela a ele e que, por isso, a trai, mente, esconde.
Ao arrombar as portas da intimidade virtual do namorado, a ciumenta também invadiu o programa de chat ligado ao e-mail, em que o rapaz me tinha entre seus contatos, e aproveitou a empreitada para lançar mais desaforos a mim. Além das palavras baixas, ameaças.
Seria um episódio lamentável e triste apenas, caso eu não estivesse grávida dos primeiros meses. Esta é uma fase em que uma grande alteração hormonal pode afetar seriamente a vida do bebê e a saúde da mãe. E eu me senti assustada e indefesa, diante de agressões gratuitas. Especialmente por, ao procurar a polícia, descobrir que estava em greve. “Só atendemos flagrantes”. Mas esse não é mesmo um caso flagrante de violência gratuita, indaguei inconsolada a mim mesma.
Em face do total descontrole da traída, de suas reações irascíveis e da falta de apoio público, procurei no texto de Contardo alguma explicação da psicanálise. “Os terapeutas psicodinâmicos notam que o ciumento é mais preocupado consigo e com seus rivais do que com o objeto de seu amor”. Logo, não há uma ética, uma conduta apropriada ou um limite capazes de frear os ímpetos destruidores do ciumento frente aos outros e até a si mesmo. Não importa à ciumenta, portanto, se o seu relacionamento torna-se escandalosamente dilacerado, se outros são atingidos, se há na história alguém mais frágil.
Ao que me parece, importa unicamente ao ciumento alimentar o próprio ciúme, e alimentando-o, nutrir também o seu desejo de vingança, principalmente, relativo ao rival ou a um terceiro, na tentativa vã de se livrar do sentimento que cultiva. Eu sou a terceira.
Mas, para além de tentar entender o comportamento violento, de tentar me proteger de alguma maneira, de me livrar do susto e do medo, senti uma tristeza, uma descrença grande demais nas pessoas, em qualquer pessoa, no amor. Como, afinal, esse sentimento pode atormentar e ultrajar tanto? Como amor e ódio podem ser assim tão entranhados? Acordei no meio da noite com pesadelos. Não pensava na ciumenta, pensava no meu filho nesse mundo de gente que comete violências gratuitas, que fere sem sentir. Chorei.
De manhã, vesti mecanicamente as roupas. Pensei no Estado que nunca está presente na vida dos cidadãos, nessa greve da polícia, no dia de trabalho pouco estimulante. Tomei café frio e evitei ligar o ipod no carro. Ao chegar ao trabalho, fui abordada pela guardete que confere os crachás de todos ao entrar. “O que é?”, perguntei com pressa e desdém. “É que você anda tão bonita ultimamente, linda. Eu tenho reparado isso e até comentei com sua colega. O que você tem de novo?”, surpreendeu-me. “Acho que é a gravidez”, respondi, me abrindo de novo em sorrisos. “Nossa, muitas felicidades, muitas felicidades!”, disse, comovida.
Sim, me lembrei. Também há no mundo as pessoas que causam pequenas felicidades assim, sem sentir. Eu espero que meu filho seja uma dessas pessoas. Que ele, ou ela, emocione mais que maltrate, faça rir mais que chorar, que se pareça mais com o pai que comigo e que, por isso, leve a vida mais leve, que saiba amar.
Um certo professor de matemática dizia que não dá pra comparar laranjas e bananas. A imagem é ótima. Não dá pra comparar país rico com pobre, gente que estudou a vida inteira e gente que só começou agora, roupa de festa com pijama. E a imagem tem a ver com o tanto de coisa que temos pra contar, tudo ao mesmo tempo: dicas de livros, filmes, músicas, impressões da vida, rotina de trabalho, contos, poesias e qualquer coisa incomparável ou não. Um monte de bananas e laranjas.
quarta-feira, 16 de dezembro de 2009
Violência gratuita
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quarta-feira, 26 de agosto de 2009
Simples assim
Um olhar. Uma brisa. Um sorriso.
Um pingo de chuva. Um raio de sol. Uma pequena nuvem.
Um risco. Um rabisco. Asterisco?
Aquele. O outro. Esse mesmo.
A vida. O amor. A gratidão.
Deus.
Somente. Sem mais. Tudo junto.
Pular o muro. Fugir na kombi. Mas não assaltar o caixa.
Dançar.
Dançar muito.
E esquecer. E lembrar. E fingir que não aconteceu.
E acreditar que aconteceu, mesmo não tendo acontecido.
Ou sim.
Respirar. E viver, viver muito. Ou viver pouco, mas bem.
Uma laranja. Uma banana. Ou nada disso.
A borboleta. O medo. Uma superação.
Foi-se. Vai-se. E volta.
A poesia.
A não-poesia.
Um olhar perdido. E um sorriso qualquer.
Simples assim. Ou difícil. Daquele jeito.
Um pingo de chuva. Um raio de sol. Uma pequena nuvem.
Um risco. Um rabisco. Asterisco?
Aquele. O outro. Esse mesmo.
A vida. O amor. A gratidão.
Deus.
Somente. Sem mais. Tudo junto.
Pular o muro. Fugir na kombi. Mas não assaltar o caixa.
Dançar.
Dançar muito.
E esquecer. E lembrar. E fingir que não aconteceu.
E acreditar que aconteceu, mesmo não tendo acontecido.
Ou sim.
Respirar. E viver, viver muito. Ou viver pouco, mas bem.
Uma laranja. Uma banana. Ou nada disso.
A borboleta. O medo. Uma superação.
Foi-se. Vai-se. E volta.
A poesia.
A não-poesia.
Um olhar perdido. E um sorriso qualquer.
Simples assim. Ou difícil. Daquele jeito.
terça-feira, 2 de junho de 2009
Bon día, Barcelona

No aeroporto lhe disseram que era fácil chegar à casa do amigo que ela nem sabia se estava à sua espera. “Basta pegar a linha 3 do metrô”. A informação veio em espanhol amável. Bom começo pra quem enfrentaria dias de catalão. Meio português, meio italiano, meio francês. “Definitivamente, língua latina”, sentenciaria dali a alguns dias. O guarda apontou com o braço esticado o caminho. Pessoas lendo as primeiras notícias da manhã, caras amassadas, fones de ouvido. Olhando para o nada, para os trilhos que não se vêem de dentro do vagão, aquela massa de gente às oito horas rumava para o trabalho. A vida segue no verão. Ela ansiava em ver a vida acontecer, em ir à praia. “Será que tenho coragem de fazer topless?”, cogitou.
O amigo se lembrava dela. Tinha se esquecido de deixar as chaves na caixa de correio. Toda viagem tem seus contratempos. Em cima da garupa da moto do anfitrião (coisa que nunca tinha pensado fazer) deixou os cabelos e o pensamento correr. Viu a Casa Batlló, parou na Sagrada Família. O moço queria logo impressioná-la. Não parava de falar da arquitetura de Gaudí, um catalão muito famoso. Só ficou mesmo na memória a cara do Cristo que a acompanhava onde fosse. Lembrou dos olhos da Mona Lisa. O Cristo encravado na entrada da igreja inacabada, com a cara pesada e grave, com a cara tão triste. E ainda nem tinha visto o outro lado da construção: a parte gótica. Sentiu calafrios.
O estômago roncava. Não achou graça nenhuma da comida francesa. Será que é por que comeu barato demais? “Se só o caro apetece, então não presta mesmo”, radicalizava. Naquela hora, até um brioche amanhecido servia. Descobriu as tapas. E a papas. Confundia toda hora. As papas vêm em tapas. Tudo vem em tapas, perceberia afinal. Tapas são porções. Papas, batatas. E como amou aquelas batatas com uma espécie de molho de alho com queijo. Dos pimentões verdes assados ainda sente o ardor. A boca enche d’água. Sim, preferiu a comida espanhola. Que os catalães não a ouçam generalizar.
Teve vontade de andar de bicicleta. Tantas bicicletas estacionadas. “Deveria me exercitar mais em Brasília”, sentiu pena. Usou o metrô. Satisfez a consciência pesada de tanta comida ao andar a pé. Seu senso de direção desusado rejeitou mapas e dirigiu-a a becos repetidos, ruas estreitas, muros de pedra, varandas abertas para o verão. Deixou-se vagabundear. Observou furtivamente transeuntes descolados, arranha céus deslocados.
No parque Guell, revisitou Gaudí. Agora, muito mais alegre. Em geral, não gostava de tanta gente reunida. Naquele dia, achou graça em tentar adivinhar o idioma falado pelo grupo ao lado. Ouviu um punhado de cantores de rua ensaiar garota de Ipanema. Percebeu um violoncelo ao longe. Passou não se sabe quanto tempo perdida entre jardins de mosaico, colunas e viadutos majestosos. Os minutos não contavam.
Teve tempo de olhar o mar do alto. Espiar os barcos. De lá de cima, imaginou os milhões de casais entrelaçados naquele instante em cada canto. Despediu-se do amigo, dos amigos do amigo. Prometeu encontros, telefonemas. Trocou endereços de e-mail. Mais um trem pela frente. Testaria seu espanhol em Madri.
Texto baseado em fotos de Monique Renne
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